domingo, 31 de março de 2013

AÇOUGUE

O garoto o olhava curioso. O velho parecia muito o ator de Silêncio dos Inocentes. Ele não lembrava o nome. “Hannibal, Hannibal, Hopkins… Era Anthony Hopkins!”. Lembrava muito mesmo. Na verdade parecia mais o personagem memorável do que o ator. O velho tinha a face serena. Um sereno com um quê de armadilha. Pele clara, cabelos brancos e ralos, penteados para trás como se passasse brilhantina. O olhar era meio distante, como se fixasse um ponto atrás da pessoa, e em sua boca um sutil, muito sutil sorriso, como se gostasse do que via.

O lugar era um açougue, só para ajudar. O garoto era novo e tinha a imaginação fértil dos meninos de quinze anos. Impressionava-se com tudo.

— Vai querer o quê, rapaz? – perguntou o velho. Ele, como devem ter suposto, era o açougueiro, e o garoto, um novo freguês. Havia há pouco se mudado para o bairro.

— Rapaz?

O garoto despertou do transe. O velho sorria. Um riso estranho, mas talvez fosse coisa da cabeça dele, pensou.

— Desculpe… O que disse?

— Que carne quer? é que já estou fechando aqui. – sorria.

— Ah… Hum… O que era mesmo? – pegou no bolso a lista que a mãe lhe dera. – Um quilo de coxão duro, meio de filé mignon e meio de coração de galinha, por favor.

Olhou para o velho e este ainda ria. Sorriu por mais alguns segundos depois do pedido.

— Um minuto. – e foi pegar as carnes na redoma embaixo do balcão.

O garoto observava. Grandes pedaços de carne crua e gelada que jaziam pendurados por grandes ganchos metálicos. Pedaços que ao menor toque balançavam como fantasmas. Quando o velho foi pegar um deles, a parte que o prendia ao gancho se rasgou e um pouco de sangue escorreu. O garoto instantaneamente contorceu a face, como se aquilo tivesse doído nele.

O velho havia jogado a peça em cima de um balcão branco, que servia de tábua, e sacou um facão afiado. Começou a cortá-la, concentrado e meticulosamente, de modo que, quando colocou os pedaços na balança, eles totalizaram exatos mil gramas. Nem mais, nem menos. Em seguida, pegou a segunda peça.

O garoto podia ouvir a carne sendo cortada e o cheiro daquilo tudo o estava enjoando. O velho não desviava os olhos da faca por um segundo. Talvez apenas para não se machucar. Pesando desta vez, exatamente meio quilo, como pedido. Um sorriso de satisfação surgiu em sua face, como se se orgulhasse da sua excelente precisão.

— Este cheiro não é muito agradável, não é? – começou a falar ainda olhando para a carne na balança, mas como se tivesse percebido a expressão do menino pela visão periférica. Por fim, o fitou bem nos olhos. – Mas eu já estou acostumado. Depois você até sente falta. – sorria.

A atmosfera tornara-se mais densa. “Sente falta? é cheiro de carne crua!” pensou o garoto, meio incomodado. Achou melhor dizer qualquer coisa.

— é, não me agrada muito.

— é… – disse o velho, com a mesma expressão serena, e voltou a mexer no restante da carne.

Na hora em que foi recolocá-las nos ganchos, o garoto achou que o fez muito lentamente, até que um puxão brusco no final encerrou a ação, como que para assentá-las. Na cabeça do menino, aquilo doeu.

Nenhum dos dois dizia mais coisa alguma. O velho agora limpava o sangue da tábua com um pano de louça já meio vermelho de sangue. Todos os seus movimentos, somados ao olhar e ao sorriso estranhos que ele tinha, eram engrandecidos pelo garoto. Era como se as imagens se transformassem em closes pela sua retina e os sons ecoassem.

Ele queria ir embora dali. Pegar logo os dois quilos totais de carne descritos na lista, pagar e não voltar mais. Achava que a qualquer momento o velho sacaria seu facão e o menino seria a próxima peça pendurada em um daqueles ganchos. A imagem do puxão doeu novamente.

Só faltavam os corações de galinha. O velho abriu o vidro que protegia as bandejas de metal com as carnes dentro, logo abaixo do balcão principal.

Pegou com suas mãos já calejadas aqueles minúsculos corações escorrendo sangue já frio. Soltou-os no balcão para ensacá-los e colocou na balança. Meio quilo exato, novamente. “Como sabia?”, pensou o garoto. A hipótese de anos de prática no açougue nem lhe ocorreu. Ele imediatamente imaginou o velho retalhando corpos humanos para pendurá-los em seu refrigerador.

O barulho imaginário, abafado e seco, de um martelo batendo sobre a carne crua ecoava em sua mente, como um prenúncio tensivo num filme de suspense. Uma risada rompeu seu novo transe.

— Sonhando acordado, rapaz? Cuidado para não deixar a cabeça voar. – sorria mais aberto e olhava fixamente o garoto. Tinha as mãos sobre o balcão, mais altas que seus cotovelos, e as sobrancelhas arqueadas.

O velho curvou o corpo em direção ao garoto e repentinamente um baque. Bateu as mãos no balcão com toda a força enquanto dava uma mordida no ar, louco.

Isso na cabeça do garoto.

O velho então pegou os pacotes de carne pedidos na lista que a mãe do rapaz havia feito e os colocou sobre o balcão.

— Aqui estão. Dá onze e cinquenta.

O garoto demorou uns segundos para reagir devido ao seu último devaneio. Em seguida, com um pequeno sobressalto mental, ficou buscando as moedas em seus bolsos e contando o dinheiro, calado. Mas não parava de olhar o velho, que se preparava para fechar o açougue. Já havia mesmo desenrolado a porta de ferro, deixando aberta só a que dava espaço para uma pessoa passar de cada vez. Usava novamente o pano sujo de sangue para limpar os resquícios de carne da tábua.

O velho pegou as carnes que não poderia mais vender no dia seguinte e as colocou numa bolsa branca e térmica. Já de saída, contornou o balcão carregando a bolsa branca.

O garoto já havia contado o dinheiro certo, mas continuava olhando. O velho olhou com os mesmos olhos serenos e distantes, sorrindo meio louco, achava.

— Preciso fechar, rapaz.

O garoto entregou as moedas de supetão, como se queimassem em sua mão. O velho o recebeu e foi andando na sua frente.

O garoto foi saindo lentamente, mas, no chão, viu um rastro que acompanhava o velho. Gotas de sangue que o seguiam e que vinham da bolsa. De outra bolsa. O velho carregava na outra mão uma bolsa de couro, maior e marrom, e agora vazando sangue. O garoto ficou lívido e, quando saiu, o velho parecia ainda mais louco a seus olhos.

— Espero que vire freguês, rapaz – disse, virando-se para o menino. Sorria.

O garoto, não podendo conter seus olhos de se arregalarem, não disse nada e andou rápido na direção oposta. Naquele dia, não tocou na carne que sua mãe cozinhou.


SEGUNDO FINAL

O garoto foi saindo lentamente, mas, no chão, viu um rastro que acompanhava o velho. Gotas de sangue que o seguiam e que vinham da bolsa. De outra bolsa. O velho carregava na outra mão uma bolsa de couro, maior e marrom, e agora vazando sangue. O garoto ficou lívido enquanto ouvia a porta se fechar antes que saísse. O velho também havia ficado do lado de dentro.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

PROBABILIDADE

Ele viu num filme* o personagem dizer:

- 2000 dólares. Eu dou 2000 dólares pra quem apontá-la assim e disparar.

Era Michael Cera sendo ele mesmo e dizendo algo próximo disso com uma arma apontada na parte de baixo do maxilar pra ilustrar a frase para os amigos, numa festa. Estava proposta a roleta russa.
Ele resolveu imitar. Tinha muita grana pra gastar, tinha quem chamar e tinha uma arma. Só precisava agora da festa.

Ele era quase inteligente. Faltava o bastante pra que cogitasse aquela ideia do filme. Coitado. Era bom, um bom garoto, como diziam as tias. Mas era playboy, e isso estragava. Porque há dois tipos de playboy: o que todos querem ser, e o que ele era. O verdadeiro. O que todos querem ser é o cara que tem tudo o que quer, é rico e bonito, mas é na dele. Tem uma vida. Mas Ele era o verdadeiro. O que todos querem ser, mas com alguns bônus: era esnobe e arrogante, e precisava de atenção. Ah e de brinde, é claro, a famosa solidão.

Feita a introdução, vamos a ele. Ele.

Bem, Ele a carregou. Colocou a única bala, chamou os amigos e comprou bebida o suficiente pra que pudessem se justificar se fossem mais estúpidos. E eles vieram. Todos estavam lá, e eles riam, e como riam! E Ele ria junto. Ria... aquela tristeza disfarçada de riso forçado. Ele era tão só. Mas tão sóoo. O clichê do “tinha tudo e não tinha nada” se encontrava sentado no sofá, semi-presente. Mas de repente ele levantou, como saído de um transe. Hora do show.
Não estava bêbado, mas fez que estava. Era mais fácil e menos doloroso assim. Vai que rissem dele. Ele pegou a arma de dentro da calça e fez a oferta que Michael Cera tinha proposto. Só que aumentando a quantia.

- Dez mil. Dez mil pra quem tiver coragem. – Falava com a arma apontada para a própria cabeça, como se aquilo o fizesse mais viril.
Eles riram. Mas não, não dele! Riram de felizes. “Dez mil, assim fácil?” Acho que não ouviram a parte em que deveriam apertar um gatilho.

Um boboca metido logo aceitou e gritinhos de preocupação foram ouvidos das tietes do galãzinho. “Não fulano, cuidado!”, “Ai meu Deus”, e todas davam risadinhas depois.
Ele pegou o revólver, mas antes olhou para o anfitrião, e deu uma piscadela, sorrindo “Dez mil, hein!”. Meio hesitante, disfarçava o medo. Suava frio, mas apertou.

- Clic – UFA, estava vivo. Que sorte a dele! E logo tratou de relembrar “Dez mil, camarada! Dez mil!” E correu pra roda de cocotas que o esperava. “Ai, fiquei tão nervosa!” E o abraçavam e davam tapinhas de repreensão.

O dono da casa sorria com o sucesso da idiotice. Mais outro resolveu tentar. – Clic – Mais outro que saía vivo. Mais dez mil pra ele, menos dez mil pra Ele.
E todos riam de alívio. Que sorte nós temos! Então Ele declarou solenemente:

- Bebamos senhores! Depois continuamos. - E guardou a arma numa gaveta no canto da sala.

A festa continuava, e Ele lá, nela, mas fora dela, indo, meio anestesiado, absorto. Ele pensava no jogo, até que como por sintonia um dos amigos, de cima da mesa de centro com uma garrafa numa mão e a outra apontando em sua direção, soltou:

- Hey, sua vez! – intimou e riu, ébrio que estava.

Ele então despertou e com um sorriso de lado nem pestanejou. Abriu a gaveta e calmamente pegou a bala pra preparar o revolver. A pegou e mostrou ao amigo, sorrindo, como dizendo “Aqui está”. O barulho do pente girando era assustador.

- Uma chance em oito hein! – e deu a mesma piscadela do primeiro, e gargalhou. - Dez mil de mim pra mim, pensou.
Apontou e apertou.

Ninguém riu. Ficou pra sempre devendo o dinheiro da aposta.

No mês seguinte o irmão foi tirar as coisas do apartamento e abriu aquela gaveta. Lá havia uma arma, com uma única bala. A que ele tinha segurado era outra e nessa falta só uma. A que completava um pente cheio. É, foi tudo um pretexto.



* The End of Love - Direção: Mark Webber

domingo, 10 de fevereiro de 2013

PONTO

Eu a via todos os dias. Ou melhor: eu mudava meu caminho para poder vê-la todos os dias. Ela estava sempre impecável, delicada e era como se as roupas daquela loja tivessem sido feitas inspiradas nela. Eu sempre dava um jeito de entrar lá, mas nunca tive a coragem, ou talvez a audácia de lhe dirigir a palavra. Nem um “Oi”. Acho que audácia é mesmo a expressão ideal. Ela parecia boa demais para mim. O que veria em um cara simples como eu, que não tinha dinheiro para comprar nem o lenço mais mixuruca que vendiam lá. Eu era um cara sem... marca.

Ela era linda; pele de porcelana: branca e lisa, cabelos castanhos e ondulados, sempre arrumados do mesmo jeito. Um jeito que emoldurava seu rosto digno de Champs Elysees. Esguia e alta. Uma modelo sem passarela.
Mas ela nem me notava. Nunca me notava. Esse meu platonismo já durava dois anos, e as vendedoras todos já estavam fartas de mim. Quando eu entrava na loja me olhavam com cara de “lá vem o pobretão que não compra nada”. Eu já sabia todos as cores de cor, modelos e preços de tudo o que era vendido lá. Talvez me dessem um emprego se eu pedisse. Mas eu nem ligava. Só ela me importava. Eu podia entrar na loja quantas vezes me desse na telha, certo? “Estamos em um país livre!”. Livre ou não, o país nem ligava, e muito menos ela. Ainda não me via. Fingia não me ver, era o que eu pensava. Mas não era esnobe. Não era não! Era tímida, a pobrezinha. É que ela era tão exuberante que as outras ao redor se apagavam e ela se constrangia. Não havia espaço pra outras. É, era isso.

Além do mais ela estava sempre sorrindo. Sempre! E isso me conquistava, e me angustiava. Como e quando a teria? E SE teria. Era essa a questão. SE. Eu a amava sem nunca ter sido considerado! Mas que fazer. Se ela era tímida, eu era um banana.
Um dia, porém, meu mundo caiu.

Em mais uma das minhas visitas o aviso “Passa-se o ponto” surgiu na porta da loja. Iria fechar. Meus Deus, iria fechar e eu nunca mais tornaria a espioná-la, quer dizer... a vê-la. Eu precisava pensar em algo, e rápido! Precisa de um plano. Uma A, um B e um C. Sabe-se lá quando aquela loja de roupas se tornaria uma vidraçaria ou um cabeleireiro. Poderia ser no dia seguinte e então minha musa das roupas finas e olhar fugitivo também iria, para sempre, com lenços e documentos que eu nunca conheceria. Iria vestir outras roupas, em qualquer outro lugar, quem sabe com outro “eu” por perto. Só de pensar, meu coração tremia.

Então tomei uma decisão. No dia seguinte fui visita-la como sempre. Como sempre, entrei na loja e não lhe disse nada. E como sempre as vendedoras me fulminaram. Mas não como sempre, eu me aproximei. A agarrei. De um jeito certeiro e rápido. A coloquei nas minhas costas e saí correndo. Ela estava dura. Não dizia um A. Ouvi alguns “louco!” vindo das loja, mas segui em frente. Eu não pensava em nada que não fosse o caminho mais curto pra chegar em casa. Eu disparei. Não morava muito longe e quando cheguei a porta já estava aberta. Eu tinha planejado tudo. Então a soltei, meio constrangido. Não consegui olhá-la a princípio. “Sou Lúcio, e bem...desculpe. Muito prazer.” Apresentação idiota. Ela não dizia nada, continuava impecável, esguia, austera e porcelana. Mas também não foi embora. Sorria. Sempre.

Desde aquele dia vivo feliz com a mulher que amo. A mulher dos meus sonhos. A visto todos os dias com as roupas mais bonitas que encontro. A mulher de nenhuma palavra e só sorrisos. A tirei daquela vitrine para nunca mais devolver. Minha porcelana.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

MARÉ

Seus olhos lutavam para não marejar. Ela olhava para cima para barrar a água salgada dos olhos. A moça ia sentada no banco do vagão do trem, passando pelas estações sem nem ver nada. Onde ia descer não fazia diferença.
Sua perna esquerda cruzava sobre a direita e seu cotovelo esquerdo se apoiava no joelho, também esquerdo. Assim, sua mão podia encontrar seu rosto para ela poder apoiar todo o peso do seu pensamento ali. Mas por mais que tentasse não se dispersar, não conseguia e vagueava.

Seu sorriso invertido conversava com seu queixo que queria chorar. Chorosa, ela pedia a si “Não chore”. Mais por ela que pelos outros, que talvez a estivessem observando, como eu fazia. Ela não se permitia, e o eu é o mais inflexível dos inquisidores.
Por mais que se tentasse ver, ela deixava os porquês impenetráveis. Ao mesmo tempo ela entregava sua inquietação interna pelo externo, e sabia disso. Julguei que fosse um amor que a deixara assim, mas que importa meu suposto acerto.

Ela usava roupas pretas e jaqueta jeans, pra dar um ar de Joan Jett. Fones pendiam dos seus ouvidos, mas ela não cantava com a música como a maioria dos jovens faz, absortos nas melodias dentro do transportes públicos. As ondas vibravam em seus ouvidos para distrai-la de seus pensamentos. Não estava funcionando. E se o coturno batia ritmadamente no chão, não devia ser pra acompanhar a música que não era ouvida.

Ela colocava o cabelo atrás da orelha, repetidamente, mesmo que a mecha já tivesse sido domada há tempos. O que acontecia? EU quase fui perguntar. Quase... cheguei a me curvar pra frente, prestes a levantar, mas algo me puxou de volta. Minha consciência... “Você vai levantar de curioso, e não de solidário. Senta”. É, ela estava certa.
A moça olhava novamente para cima agora. Mas dessa vez ela não conseguiu, não pôde segurar. Seus olhos choraram e suas mãos os cobriram, como para censurá-los. Alguns segundos depois eu me levantei. A última estação chegou: meu ponto final. Eu saí, e as portas se fecharam logo atrás. Ela ficou, e se recolheu junto com os trens.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

HOSTIL

Seu olhar me era seco. Cortava. Sua postura, austera, o queixo lá no alto. Esnobava. Dirigia-se a mim com altivez. Diminuía. Algo nela me repelia, depreciava. Hostil, ela era. Isso me incomodava. Logo eu, que nunca havia lhe feito mal algum. Que sempre a tratei como trato a todos. Não entendia essa atitude, essa escolha. Por que a mim?
Pisava firme quando vinha em minha direção, trotava. Fazia questão de me ultrapassar, de esbarrar em mim, só pra me provocar. Eu não entendia aquilo. Não reagia. E isso só piorava.
O que antes era sutil passou a ser direto. Na cara dura. Me criticava: a mim, meus modos, minhas ideias, minha presença ali. Que inferno! Tudo isso foi me dando ânsia. Uma sensação de não querer ser, já que a alguém eu tanto desagradava. Mas eu me recusava, conflitava: eu não podia fazer isso comigo. Então eu fui me transformando, e eu que nunca partilhei da vingança, esse vício, passei a revidar.

Ela me feria com o olhar, mas agora eu cortava mais fundo. Íris de lâmina. Eu sabia que ela vinha pra trombar em mim, e quando vinha, eu enrijecia e doía nela. Carne de pedra. Passei a fazer tudo melhor, melhor que ela. Não podia mais me criticar. Eu rebatia ignorando. Se ela tentava, falhada. Minha arma era calada.
E ela foi definhando. Diminuindo como a mim fazia. Agora ela me evitava. Não havia mais espaço para ela na minha antiga angústia porque o meu ego tinha tomado todo o lugar. Eu a queria cada vez mais longe e menor. E eu agora conseguia. Conseguia afastá-la com a, agora minha, altivez. Eu não precisava mais entender o porquê de sua ação porque eu havia achado a solução: minha postura agora era de fel, amarga. Tudo isso me causava um sentimento estranho. Não me felicitava exatamente, mas trata-la assim me tomava e cada vez que eu via seu olhar baixo passar junto ao meu altivo, eu enchia o peito. Um meio sorriso surgia no meu rosto, um sorriso de satisfação.

Era como se ela houvesse sumido. Um fantasma vagando ante a minha presença, ante o meu ego engrandecido. Será que eu estava sendo muito cruel, cru em exagero? Não, não estava. Eu havia suportado, tímido, por tempo demais. Minha mudança era mais do que justa. Minha resignação se dobrava em hostilidade, e agora eu a devolvia mais dura. Eu percebia a minha transformação, clara e seca. Estava latente em mim: eu havia mudado como nunca pensei que poderia mudar. A diferença era notável. E apesar de ser direcionado somente a ela, tudo o que a isso se relacionava tinha que vir primeiro. Minhas ações no trabalho visavam a, antes de tudo, atingi-la, e se assim não resultassem, eu agiria de outra forma até que conseguisse, nem que fosse minimamente.
E eu continuava a analisa-la, sempre. Ela não me dirigia mais a palavra, não porque quisesse assim, mas porque não conseguia. Se antes o fazia, falava de mim, para mim, e era eu que mudo permanecia. Agora, a mudez era dela, sem que para isso eu tivesse precisado me desfazer da minha. E se antes esta era fruto da intimidação, agora era do desprezo.
Mas de repente ela voltou a mudar. Conforme eu fui encrudescendo, parecia que ela ia... suplicando. Suplicando pela minha atenção. Ela pedia silenciosamente pra que eu não a ignorasse mais, mas eu já havia aprendido a não vê-la. A forçar seu esquecimento. E ela tinha sentido isso, como um baque. Por isso voltava a falar em minha presença, não para me diminuir, como antes, mas como que pra que a incluísse novamente na minha percepção. Sua opacidade voltava. Se expressava, esbarrava em mim, me observava, voltava a falar coisas sobre mim, seu olhar me perfurava. Mas não como antes. E eu entendi. Me amava.